CONCURSO DE CONTOS DA T.L. – 2009
(MENÇÃO HONROSA)
PRATELEIRA 13
"Em
todos os lugares da vida (...) eu fui sempre, para todos, um intruso."
Fernando Pessoa
A estrada inclinava-se
ligeiramente para a esquerda, deixando antever uma povoação de aspecto curioso
e nome sugestivo: Cabanas de Viriato.
O viandante mais alto
proferiu algumas palavras numa língua estranha, que naquela altura não foi
entendível, recebendo em troca um acenar afirmativo do mais baixote e um abanar
de cauda do pequeno cão que os acompanhava.
Se fosse possível uma
tradução, talvez pudéssemos entender que a fala mais natural seria um
“finalmente chegámos!”.
Por sinais e gestos
tentavam comunicar, ao mesmo tempo que referiam uma palavra, de todos,
conhecida: Viriato!
- Sim, claro, Cabanas de
Viriato!
- “Non, non”, Viriato! –
Repetia o mais baixote, com voz rouca.
- Gaita para estes! –
Desabafou o interpelado – Sim, estão em Cabanas de Viriato! Sim! – Gesticulava
afirmativamente com a cabeça, apontando com ambas as mãos para o chão.
- Ó Toino, vai chamar o
regedor para ver se ele os entende…
- Estes falam esquisito,
é melhor mandá-los ao senhor doutor, ele andou lá pelas estranjas…
Conduzidos por um grupo
cada vez maior, foram levados até um palácio enorme, a cuja porta um dos
acompanhantes bateu, para depois manter um curto diálogo com uma figura
impecavelmente vestida, de rosto calmo, embora triste, que mandou entrar os
estrangeiros, para uma sala ampla que já vira melhores dias.
- “Monsieur” Viriato?
- Ah! Falais francês?
Pelo menos, uma espécie de francês!
Durante algum tempo,
aquelas três figuras, conversaram e desconversaram, selaram uma certa forma de
amizade, que traduzida para português seria aproximadamente assim:
- Senhor Viriato?
- Não, não. O meu nome é
Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches.
- Mas nós procuramos um
grande herói daqui, Viriato. Esta terra não é Cabanas de Viriato?
- Sim, Cabanas de
Viriato!
- Bem, esta casa não é
bem uma cabana e algumas outras que já vimos, também não, mas ele tem que viver
em algum lugar, não?
- Viriato? A tradição
diz-nos que Viriato nasceu aqui, mas ninguém o pode afirmar com certeza…
- Nós andamos á sua
procura, sabemos que ele é perseguido por defender as suas terras e as suas
ideias, tal como nós…
- E como eu, no que
respeita às ideias… Acabei aqui depois de ser demitido por agir de acordo com a
minha consciência.
- E o que fazia?
- Era cônsul, uma
espécie de representante, numa cidade do vosso país…
- Da Gália?
- Gália?!... Bem, já
foi, agora é França. Na cidade de Bordéus.
- Bordéus? Não conheço…
E foi demitido porquê?
- Desobedeci às ordens
que os meus chefes me deram para não intervir numa coisa e como não concordei,
castigaram-me.
- Desobedecer aos chefes
é grave. Nós obedecemos sempre ao nosso chefe!
- É porque ele é justo.
Mas muitos não são. No meu caso foi por causa de um sanguinário, que ainda anda
a varrer o vosso país e muitos outros, a ferro e fogo, que decidiu deportar,
explorar e deixar morrer pessoas, só por serem judeus, ciganos… As ordens que
tive foi para não salvar ninguém, para fazer de contas que não havia nada, para
deixar correr…
- Não sei o que é isso
de judeus ou ciganos, mas esse tipo só pode ser César e é mania dos romanos
escravizarem todos os povos que conquistam. Foi sempre assim e assim sempre vai
ser! …
- Não, Hitler é o nome…
- Nunca ouvimos falar.
- Esperem aí, parece que
me recordo de vocês, apesar dos disfarces… O homem e a menina que estavam
sentados nas escadas à espera de um visto para poderem vir para cá! Estavam na
soleira da porta, exaustos, lembro-me bem. Eu não tinha mais papel e fui
buscá-lo... É isso, esses disfarces de tranças e bigodes estão óptimos, mas
aqui também é preciso toda a cautela! Há por cá uma polícia terrível, que não
se ensaia nada de prender, torturar, mesmo matar. E há espiões perigosos… Mas
como conseguiram? Fiquei desesperado quando vi os nazis a levarem-vos. Bem
corri pela rua com os vossos vistos na mão, gritando que vocês já estavam
debaixo da minha autoridade, mas não consegui apanhar aqueles fanáticos que vos
arrastavam. Que alegria saber que estão vivos! Tanto chorei por vós, por não
ter chegado a tempo, que se me secaram os olhos. Em vós senti a perda de toda a
Humanidade. Deus meu, que felicidade...
- Senhor, não estais bem
da cabeça, certamente precisais de vos tratar… Não estivemos em lado nenhum
desses, nem andámos a fugir de ninguém. Estais à beira da loucura, tendes
visões? Se estivéssemos na nossa terra, teríamos uma poção mágica que vos poria
como novo. Assim...
- Eu posso ajudar com
uns abanões? … - Inquiriu o mais alto.
- Não, claro que não!
Senhor, agradecemos a sua hospitalidade e achamos interessantes as vossas
histórias, mas estamos aqui à procura de um lusitano de grande heroísmo, a quem
chamam Viriato, que luta contra os romanos.
- Todos continuamos a
lutar contra os “nossos” romanos, contra aqueles que nos querem reduzir a uma
simples peça da engrenagem de uma máquina, por mais poderosa que ela seja. Não
sei o que vos fizeram para ficarem assim, como que loucos, penso que foi o
Hitler mais a sua maldita guerra…
- Senhor, nós já vos dissemos
muitas vezes que não conhecemos Hitler nenhum, nem nunca ouvimos falar dele,
até agora. Ouvimos, isso sim, falar de um pastor dos Montes Hermínios que com
outros pastores faz a vida negra aos romanos. Também nós, lá na nossa terra,
estamos cercados por eles, já dominaram todas as terras e todas as gentes em
nosso redor, mas não a nós que continuamos a resistir, com algumas ajudas, é
certo, mas não cedemos...
- Eu sei. Hitler já
conseguiu os seus aliados dentro do vosso próprio país, como sempre fazem os
ditadores. Logo encontram quem lhes preste vassalagem, quem se deixe calcar
para poder depois calcar os seus concidadãos…
- Senhor, porque
insistis em falar desse tal Hitler, que nós não conhecemos? De uma vez por
todas, são os romanos que nos tiranizam, que nos reduzem à escravatura, embora
tenha razão num ponto: Houve logo muitos e muitos gauleses que se entregaram
nos braços desse tirano, vendendo os seus povos, a troco de algumas mordomias.
- Meus amigos, não sei
de onde vindes nem quem sois, acho mesmo que as vossas cabeças não estão lá
muito boas. Se calhar apanharam sol a mais na vossa viagem, mas deixem-me
dizer-vos que a História vai julgar os romanos e as suas conquistas de modo
muito benévolo, como marco de modernidade, ao contrário do que se irá passar
com o Hitler.
- Os romanos são loucos!
– Fez notar o maior.
- Os nazis também! –
Frisou Aristides.
- Temos, então, loucos
em todo o lado! – Concluiu o mais pequeno, estendendo a mão papuda ao cachorro
que rodopiava à sua volta…
- Menina Júlia?
- Sim, senhor doutor?
- Diga-me cá uma coisa,
por favor: Porque está isto tudo tão desarrumado?
- Senhor doutor,
estiveram cá os alunos da Escola de Cabanas de Viriato, em visita de estudo, e
mexeram nos livros todos.
- Está bem, Menina
Júlia, mas o que é que faz este livro do Asterix metido dentro deste sobre
Aristides de Sousa Mendes?...
- Desculpe, senhor
doutor, vou já colocar cada um no seu lugar... Prateleira 13…
OSKAR
S*
* Pseudónimo usado por Luís Pessoa